19 de jan. de 2010

Tratado sobre a tolerância, Voltaire
O pequeno livro de Voltaire utiliza-se de uma caso real, o martírio da família Callas, para discorrer sobre a intolerância ainda pregada pela Igreja Católica no séc. XVIII, e a partir daí realiza uma análise sobre a necessidade e a utilidadade prática da intolerância como meio de controle social.
Permeado, como quase toda obra de Voltaire, pela veia satírica do autor, o Capítulo XVI apresenta um diálogo exemplificativo entre um morimbundo e um homem que goza de boa saúde: 
"Um cidadão encontrava-se na agonia em uma cidade da província; um homem de boa saúde veio insultá-lo em seus últimos momentos e lhe disse:
- Infeliz! Pensa como eu agora:assina este documento, confessa que existem cinco proposições em um livro que nem tu nem eu jamais lemos; assume agora as opiniões de Lanfranc contra as de Bérenger, as idéias de São Tomás de Aquino contra as de São Boaventura; abraça as resoluções do Segundo Concílio da Nicéia contra o concílio de Frankfurt; explica-me neste instante como essas palavras "Meu pai é maior do que eu" significam expressamente "Eu sou tão grande quanto Ele". Explica-me agora como o Pai comunica tudo ao Filho, exceto a paternidade, ou eu vou mandar jogar teu cadáver eum depósito de lixo; teus filhos não herdarão teus bens, tua mulher será privada de sua pensão e tua família vai mendigar um pedaço de pão, porém os meu semelhantes não lhes darão nada. 
O MORINBUNDO -   Mal consigo entender o que estás me dizendo; as ameaças que me fazes chegam confusamente a meus ouvidos, mas elas pertutbam minham alma e tornam horrível minha morte. Em nome de Deus, tem piedade de mim. 
O BÁRBARO  -  Piedade! Não posso ter piedade de ti se não concordares com minhas opiniões em todos os detalhes.
O MORINBUNDO -  Ai de mim! Não percebes que, nestes momentos derradadeiros, todos os sentido estão enfraquecidos, todas as portas de meu entendimento estão fechadas, as idéias fogem deminha cabeça, meus pensamentos desaparecem? Estou em condições de discutir?
O BÁRBARO  - Está bem, se tu não é capaz de crer no que eu quero, diz que acreditas e para mim será o suficiente. 
O MORINBUNDO - Como posso cometer perjúrio para agradar a ti? Dentro de um momento vou comparecer perante o Deus que castiga os perjuros.
O BÁRBARO  - Isto não importa; terás o prazer de ser enterrado em um cemitério e tua mulher e teus filhos terão com o que viver. Morres hipócrita; a hipocrisia é uma coisa boa; é, como já foi dito, uma homenagem que o vício faz a virtude. Um pouco de hipocrisia, meu amigo, que é que isso te custa?
O MORINBUNDO -  Ai de mim! Desprezas o Deus ou então não o reconheces, porque estás a pedir-me uma mentira em um artigo de morte, logo tu que em breve serás julgado por Ele e que terás que responder por essa mentira.
O BÁRBARO  -  Como, insolente!? Eu nã reconheço a Deus?
O MORINBUNDO - Perdão, meu irmão, mas eu temo que nem sequer O conheças. Aquele a Quem eu adoro reanima neste momento minhas forças para dizer-te em minha voz morimbunda que, se acreditas em Deus, deves demonstrar caridade para comigo. Foi Ele que me deu minha esposa e meus filhos, e tu deseja fazê-los perecer na miséria. Quanto a meu corpo, podes fazer o que ebm te parecer; eu o abandono em suas mãos, mas eu te conjuro a crer em Deus.
O BÁRBARO  -   Faz, sem raciocinar, o que te digo: é o que eu quero e é o que te ordeno.
O MORINBUNDO - E qual teu interesse em me atormentar tanto?
O BÁRBARO  -  Como? Que interesse? Se eu conseguir a tua assinatura vou conseguir uma boa posição canônica.
O MORINBUNDO - Ah, meu irmão! Chegou meu último momento; vou rogar a Deus que toque teu coração e te converta.
O BÁRBARO  -   Que vá para o diabo esse teimoso que não quis assinar! Pois eu vou falsificar a sua assinatura e assinar em teu lugar."

Cabe salientar que o livro não é em dálogo; está mais para um texto argumentativo, mas destaquei o capítulo acima por exemplificar bem a idéia central do livro. 

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